"Espólio", de Alves Redol - Nasci com passaporte de Turista
A riqueza e a complexidade com que é construída a imagem da personagem principal do conto Espólio, de Alves Redol, acabou por cativar a nossa atenção. Afinal, poderíamos debruçar-nos sobre qualquer outro conto, sobre qualquer outra história,sobre qualquer outro autor, - de preferência fazer a vénia a uma paixão por um nome literário da moda, talvez um gigante de vendas estrangeiro, colocado numa prateleira chique, da qual pudéssemos ser vistos por todos a consumir cultura e a seguir o azimute das Trends - sobre qualquer outra categoria que ao plano da construção narrativa dissesse respeito. Por ventura um romance que nos enchesse o ego. Mas acabámos em Zé Maçarico, um alma-de-Deus, homem do povo, já fora de idade (daí a análise à temática da influência do tempo sobre a personagem) excomungado da vida, renunciado por todos, até ao ponto de ele se renunciar a si mesmo! Zé Maçarico faz parte de nós, ainda que o queiramos renegar, é nosso, é a nossa história e a nossa matriz. Ninguém nos tem espelhado tão bem perante os nossos olhos como Redol - e mais meia dúzia - e só o recusa quem tem a mania de recusar as próprias raízes e de se armar em elitista literário e social.
A tese do compromisso social da literatura faz-se, aqui, partindo da representação do universo psicológico da personagem, e da sua relação com o mundo. À medida que passamos por cada linha deste conto de Redol identificamo-nos cada vez mais com a ideia de que a elaboração da personagem acaba por se tornar num mecanismo privilegiado, através do qual o autor ascende à denúncia e à projeção de valores que, pela sua presença ou ausência, considera essenciais na construção do debate sobre a sociedade e sobre o Homem. Assim, vemos um Zé Maçarico humanista – por vezes – num constante duelo de forças que o fazem também ser, em outros momentos, herói em contradição.
O drama que enforma a personagem, a sua alma cinzenta e solitária, o despojo de vida que sofre, o conflito moral que representa, a atordoante incapacidade e passividade de que se reveste – já nem à égua pode valer, servindo-lhe a ceia! – atordoa o próprio leitor.
Como podíamos deixar de chorar com a imagem de Zé Maçarico, deixar de dividir a sua dor, partilhar o frio que lhe vai na sua alma? Poderemos enquanto leitores encontrar outra forma de ajudar o homem que, no fundo, comete a ousadia de nos mostrar aquilo que nós próprios somos, ou aquilo que tememos que, um dia, venha a ser o nosso futuro? Zé Maçarico é espólio de grande e perturbante beleza. Melhor - a maior das belezas está encerrada na própria degradação de Maçarico. A idade, a pobreza, a decadência, o ostracismo, a indiferença, a saudade e a tristeza a que se vê sujeito não deprimem, porquanto é uma pintura valiosa, plena de arte honesta.
“Estava gelado. Não sabia se era o vento entrando pelos buracos da porta e pelas fendas do telhado que o arrefecia, se o frio que sentia dentro dele e gelava o ambiente…Esfregou as mãos e deu-se de torcê-las, como se nelas esmagasse a vida.”[1]
[1] ALVES REDOL- Nasci com passaporte de Turista, e Outros Contos
Papagaio